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CASA DE PAULO FREIRE – DA UTOPIA A REALIDADE

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Não se questiona que Freire é um cidadão do mundo, não se questiona que também foi à figura mais notória do século XX quando escreveu o seu “BestSeller” Pedagogia do Oprimido. As andanças pelo mundo falando de sua obra e aplicando na prática em outros países a pedagogia da libertação dos corações e mentes o fez entrar no seleto grupo dos maiores pensadores do mundo. Depois de ser expulso de sua pátria em 1964, Freire saiu pelo mundo apresentando sua genial descoberta, talvez nem imaginasse que essa sua inquietude pedagógica transformaria a vida daqueles que sabiamente chamava de “esfarrapados do mundo”, sujeitos simples que vendiam sua força de trabalho nos latifúndios da terra sem saber ler uma simples palavra.

            Como enfatiza Paulo Freire (1997, p. 9):

Em sociedade que exclui dois terços de sua população e que impõe ainda profundas injustiças à grande parte do terço para o qual funciona, é urgente que a questão da leitura e da escrita seja vista enfaticamente sob o ângulo da luta política a que a compreensão científica do problema traz sua colaboração.

            Em contato com outras nações Freire fez o experimento de sua obra para as classes populares e foi no Chile (1968) que começou escrever uma pedagogia que libertasse o oprimido das garras do opressor e da sua engrenagem produtiva do capitalismo excludente. Mas foi somente nos Estados Unidos da América (1972) que foi publicado pela primeira vez a sua obra. Foi também no Chile em 64 que montou o primeiro círculo de cultura fora do Brasil, trabalhou com os camponeses que tinham gana em aprender transformar as letras com a mesma habilidade e competência com que transformavam a terra para o cultivo.

            Nas décadas de 60 e 70 aconteceu na América Latina uma onda de golpes de estado e o Chile, que tão bem o acolheu, também não foi poupado, não restando a Freire outra alternativa a não ser deixar aquele país amigo e partir para os EUA que o acolheu como cidadão americano. A América do Norte foi o porto seguro para o professor sair pelo mundo como um verdadeiro andarilho da utopia falando da sua pedagogia para alfabetizar as classes populares.

            No continente africano visitou vários países, principalmente os de língua portuguesa como Guiné Bissau, Cabo Verde, Moçambique, São Tomé e Príncipe. Também esteve no Quênia, e no Timor Leste, continente Asiático. Com esse pequeno breve histórico sobre a vida de Freire, se pode afirmar que ele não tinha morada fixa, a sua morada era o mundo, por isso é conhecido e se auto proclamava um “cidadão” do mundo.

            Ao partir pelo mundo sonhando sonhos possíveis, Freire deixou em cada canto que passou uma legião de seguidores, sujeitos que impressionados com a sua pedagogia libertária não hesitou em pôr em prática os ensinamentos do mestre das classes populares, dos marginalizados socialmente. É pra se destacar que hoje existem espalhados pelo mundo mais de 90 núcleos de pesquisas e estudos que levam o nome de Paulo Freire, os IPF’s – Institutos Paulo Freire.

            No Brasil, sua pátria, não foi diferente. Os movimentos populares e sociais que defendiam a educação dos excluídos da cidade e do campo se fizeram protagonistas por insistir na teimosia de Freire, ocupando espaços estratégicos na sociedade para falar de educação para a inclusão social. Pode-se pegar como modelo o MST (Movimento Dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) do Rio Grande do Sul que em seus acampamentos-escola utiliza o método de Freire na alfabetização dos camponeses e de seus filhos e filhas.

                        Como destaca Maria da Glória Gohn (2005, p.12):

A educação para a cidadania não faria parte do universo da classe trabalhadora porque ela não seria cidadã. A igualdade natural, inata entre os homens, seria desfeita no plano da sociedade real, pela desigualdade entre cidadão-proprietário e o não-cidadão e não proprietário.

            Foi partindo desse pressuposto que as classes populares assumiram a responsabilidade de fazer a alfabetização de pessoas excluídas, por entenderem que uma parcela da população, que alguns estudiosos chamam de demanda reprimida, ficou fora do universo escolar por muito tempo. Assim surgiu a figura do educador popular, pessoas que vivem a realidade de sua gente, pessoas que estão envolvidas com gente e compreendem suas angústias, os seus anseios, e as suas necessidades. Esses educadores populares, homens e mulheres que em sua maioria tem o ensino médio, se organizam como podem participando dos movimentos organizados da sociedade que faz a discussão da temática em questão.

            Essas atividades são chamadas de “encontros de formação de atores” que serão multiplicadores de ideias na comunidade em que vive. E foi em um desses encontros que em 1996, um ano antes da morte de Freire (02 de Maio de 1997), que nasceu, em São Sebastião – DF, a morada do mestre da pedagogia do oprimido: a CASA DE PAULO FREIRE. Essa instituição, criada pelo movimento popular, acolhe pessoas não alfabetizadas da comunidade e adotou como filosofia de não excluir ninguém do processo educativo todos que procuram o projeto são devidamente acolhidos.

            O relato a seguir confunde-se com um relato de minha trajetória pessoal, uma vez que a história da Casa de Paulo Freire é também a história de uma inserção pessoal no projeto.[GC1]

            O que tinha a oferecer era muito pouco, mas tinha o principal, a vontade de ensinar. O grande desafio é que nunca tinha sido professor antes, nunca havia enfrentado uma turma antes.

            Transformei, então, a garagem da casa em sala de aula. Nossa estrutura era: vinte mesas, vinte cadeiras, um quadro de compensado usado, giz e muita coragem. Estando com a estrutura montada, fui à busca dos alunos. Esse trabalho foi realizado nos finais de semana, porque a maioria sai cedo para trabalhar, e eu também! O trabalho de campo ou captação de alunos é feito de casa em casa; quase sempre procuro as localidades que vivem em situação de risco, ou seja, na precariedade.

            Na abordagem, precisa-se ser estratégico. O educando e a educanda possuem resistências para não estudar, quase sempre têm uma desculpa, e o entrevistador precisa ter o poder do convencimento. Também tive a oportunidade de perceber que a maioria das pessoas que mais se recusavam a se inscrever no projeto de alfabetização eram afro-brasileiras. Isso me fez por várias vezes refletir o tamanho do desafio que encontraria pela frente.

            Comecei a turma com apenas três alunos, já que vinte e dois dos vinte e cinco que convidei não compareceram: embora sonhasse com a garagem cheia, me senti contemplado com a presença dos três alunos.

            Havia colocado vinte e cinco cadeiras em forma de círculo. Recordo-me que os educandos (as) que compareceram sentaram separados um do outro; o mais interessante é que eram três homens, pois nenhuma mulher compareceu no primeiro dia de aula. Por esse motivo, o Adilson, o João e o Geraldo ficarão para sempre na memória viva da Casa de Paulo Freire.

            A proposta libertadora de educação defendida por Paulo Freire não permite que os alunos fiquem “cheirando a nuca” uns dos outros como é no modelo tradicional. As cadeiras são colocadas em forma de círculo e o professor é, na verdade, um animador de círculo, um facilitador do processo educacional. A aprendizagem adquire uma característica mais centrada no aluno, na independência e na auto-gestão da aprendizagem. Pessoas aprendem o que realmente precisam saber para aplicação prática na vida.

            A experiência é rica fonte de aprendizagem, através da discussão e da solução de problemas; por isso usa-se a “palavra geradora”, que consiste em uma palavra extraída do universo vocabular dos alunos e que dá um norte para se abrir uma discussão no círculo de cultura que é chamada de problematização. Essa discussão é o início da conscientização do aluno, que é intermediada pelo animador de círculo, esses absorvem as informações que surgem no debate do tema em questão. São exemplos de palavras geradoras, LOTE, JOGO, COMIDA, PASSAGEM, VIZINHO, LIXO, TRABALHO, SEGURANÇA, ESCOLA etc. Todas fazem parte da realidade do aluno. Em seguida a palavra geradora é separada em sílabas, como ESCOLA – AS. ES. IS. OS. US – CA. CO. CU – LA. LE. LI. LO. LU, sem seguir o método tradicional de estudo sequencial do alfabeto. Com o estudo das sílabas da palavra geradora, são formadas outras palavras. Exemplo: ISCA, CALO, COLA, ESCALA, CUCA, etc.

            O aluno tem, portanto, a oportunidade de ver a mesma silaba em outras palavras geradoras, o que facilita a sua memorização e aprendizagem, dando segurança para desenvolver a oralidade e a escrita. Para facilitar, a palavra geradora vem acompanhada de ilustrações, de modo que o aluno perceba na imagem o que vai ser estudado. Para a primeira aula, escolhi a palavra “ESCOLA” porque era preciso passar para eles a sua importância.

            A continuidade dessa interação professor-aluno, no entanto, não foi fácil. Fiz várias tentativas para motivá-los, mas percebi um silêncio profundo e persistente por parte deles. Sabia que, apesar da resistência, tinha que continuar para me sentir seguro e alimentar a segurança deles. Notei, então, que o Adilson, de cabeça baixa, tentava rabiscar algumas palavras formadas, o que já era um bom sinal. Outro fato que me chamou atenção foi que, no decorrer da aula, várias pessoas que foram convidadas passaram em frente a casa, viram os três alunos, mas por alguma razão decidiram não entrar.

            Quando a primeira aula terminou, agradeci a presença deles e pedi para retornarem na aula seguinte. Fiquei com a sensação de que eles não voltariam, mas, para a minha surpresa, eles não só voltaram, como trouxeram consigo mais alunos.

E assim a Casa de Paulo Freire foi construindo sua história. Hoje, mais de três mil pessoas foram alfabetizadas e vários ex-alunos deram sequência nos estudos; alguns já terminaram e outros estão fazendo curso superior, outros voltaram para o estado de origem e começaram ensinar sua gente. De vez em quando recebo mensagens de agradecimento pela iniciativa: esse é o combustível para continuar a luta contra o analfabetismo. Sei que o desafio é grande porque na cidade de São Sebastião-DF ainda há 2,6% de pessoas não alfabetizadas e que resistem muito em aceitar a ideia de estudar (SEDEST 2013).

            A Casa de Paulo Freire já recebeu e recebe vários visitantes. São populares, professores, alunos estagiários, amigos e alguns facilitadores. Outros projetos estão sendo desenhados, como um preparatório para o vestibular, que propõe que o aluno, depois de concluir o ensino médio, retorne à Casa de Paulo Freire para receber um reforço nas matérias que mais encontraram dificuldades. No momento, estamos trabalhando com três matérias específicas: Física, Matemática e Química.

            Fazemos, também, vários eventos voltados para a cultura, porque acreditamos no potencial de nossa gente. Um dia Paulo Freire também acreditou criando o MCP (Movimento de Cultura Popular), e nos deixou o exemplo de que precisamos lutar para tornar a nossa sociedade mais desenvolvida culturalmente.

            Nessas duas décadas de projeto, já que estamos funcionando desde 1996, muita coisa aconteceu na garagem da casa. Foram muitos os relatos de gente que veio construir a Nova Capital, gente que fugiu da seca, gente que deixou a escola porque precisava trabalhar para sustentar a família. Pessoas que chegaram sem perspectiva alguma e saíram transformadas pelo simples gesto de estudar. Chegaram à Casa de Paulo Freire, e alimentaram os sonhos de construir um mundo melhor.

            A proposta de Freire tem o encantamento de aproximar pessoas através do diálogo que, mediatizados pela experiência de mundo que o sujeito construiu durante a sua trajetória de vida, possibilita a relação dialética entre educando-educador. Nesse sentido o professor muito mais facilita a vida do educando (a) norteando o seu desenvolvimento na aprendizagem do que propriamente ensinando teorias às vezes desnecessárias para o aluno que tem pressa em aprender para colocar em prática aquilo que aprendeu em mutualidade em sala de aula. A Casa de Paulo Freire não foge da proposta de ensinar colocando como enfoque a criticidade do aluno que precisa fazer um despertar para o seu processo de inclusão por inteiro e não em partes, e que possa entrar de cabeça erguida no mundo do conhecimento literário, e depois na sociedade.

            Como destaca o próprio Paulo Freire (1996, p.24):

Quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender participamos de uma experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a seriedade.

            Partindo desse pressuposto se pode afirmar que a alfabetização que se aplica na Casa de Paulo Freire vem ao encontro da realidade em que vivem os excluídos do processo de escolarização. Assim, a educação de jovens, adultos e idosos passa a ser um desafio ainda maior, pois o primeiro desafio do educador e da educadora é fazer com que o sujeito possa aderir à nova realidade a que está sendo submetido, e vai mais além quando é sabido que a grande maioria que participa desse processo não está ali porque reconhece que há uma dívida secular do estado com esses analfabetos e analfabetas e que na verdade foram condicionados a serem analfabetos, não tendo sido uma opção que fizeram.

            Nesse contexto os educadores e educadoras que atuam na Casa de Paulo Freire são preparados para assumir uma posição pedagógica diferenciada, onde o professor deixa de ser o centro das atenções e passa a focar de forma mais direta no aluno que alimenta a esperança de aprender a ler e escrever em um pequeno espaço de tempo. Essa ansiedade é perceptível quando o educando (a) se sente ameaçado no seu ambiente de trabalho com a perda do emprego, ou também quando vai disputar uma vaga no mercado de trabalho que deixa transparecer para o entrevistador que se trata de um candidato não alfabetizado, esses exemplos práticos aparecem na rotina do seu dia a dia no projeto.

            Para uma pessoa não alfabetizada procurar uma escola para se alfabetizar é um desafio árduo. Na sua avalição tanto faz está estudando ou não, pois acredita que nunca vai faltar atividade braçal para desempenhar e faz resistência, isso quer dizer que ganham a vida com a força que vem dos músculos e não da cabeça, são opiniões tanto de homens quanto de mulheres. Por um lado, pode-se até ter razão, mas por outro esquecem que a parte intelectual é necessária na hora de se fazer cumprir as suas garantias trabalhistas, ai pensam melhor e a maioria faz a adesão e entra no projeto de alfabetização.

            Na Casa de Paulo Freire trabalham-se as inter-relações usando o “círculo de cultura”, que é o formato ideal para se fazer uma discussão das temáticas construídas da relação professor-aluno. Os temas, ou palavras geradoras, facilitam a discussão em círculo. Cabe ao professor ator intermediar essa discussão ouvindo as opiniões favoráveis ou contrárias e jamais colocando a sua opinião formada. Essa construção mútua de desenvolvimento da aprendizagem possibilita ao educando (a) o despertar para a construção de sua consciência crítica em comunhão com outros alunos que se somam no círculo de cultura.

            Dessa forma a postura ética do professor em relação ao aluno é levada em conta na medida em que se descobre que a didática apresentada é a de construir “com”, e não o de construir “para”.

            Outro ponto imprescindível para os educadores do projeto diz respeito à amorosidade, ponto fundamental para a criação de vínculos entre os educadores e educandos (as). Lidar com um público em situação de vulnerabilidade não é tarefa muito simples, pois esses carregam consigo as incertezas, decepções e as negações que o mundo e a vida lhe impõem. Outro problema que o educador precisa administrar com inteligência é o fato dos homens se acharem mais capazes do que as mulheres, seguindo aquela velha máxima secular de que as mulheres não precisavam estudar, pois precisam cuidar do lar e dos filhos.

            De acordo com Telma Ferraz Leal (2005, p.75):

Essa distinção na escolarização entre homens e mulheres representa um processo de resistência por parte da sociedade ao fato de as mulheres terem a mesma formação educacional que os homens. Socialmente, o papel das mulheres não deveria ultrapassar os limites do lar, mesmo que elas tivessem conseguido o direito de frequentar as escolas.

            É papel dos educadores, não só populares, mas os que também atuam na rede pública e particulares de ensino a desconstrução dessas ideias seculares. A segregação não contribuirá em nada para o desenvolvimento da sociedade. Tirar a mulher do cenário escolar em vigência não contribuirá para livrar o território nacional e o mundo do analfabetismo.

            Com esse olhar cuidadoso, a Casa de Paulo Freire é muito mais que uma escola de alfabetização quando assume a responsabilidade de alfabetizar sujeitos de forma voluntária. Está presente na lista dos que fazem a diferença, aumenta e muito o comprometimento dos educadores e educadoras do projeto. Ao mostrar para o indivíduo que ele é capaz de se transformar e ao mesmo tempo em que se transforma, sendo capaz também de transformar a realidade da sua família, da sua rua, do seu bairro, da sua cidade e do seu país, se dá a certeza de que é preciso seguir em frente fazendo a inclusão pela educação libertadora e conscientizadora.

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