Breves considerações sobre o método de Paulo Freire
Conforme o Próprio Paulo Freire relata (1992), em 1947, trabalhando no SESI e, já preocupado com a relação família-escola, este educador procurava entender as práticas educativas aplicadas nas escolas e por parte das famílias. Começou a analisar as dificuldades que as populações que viviam às margens da sociedade capitalista estavam enfrentando para exercer a sua atividade educativa. Seu objetivo era buscar um entendimento entre as partes, para tentar, na mutualidade, intensificar uma maior presença das famílias nas escolas; seriam uma participação democrática onde os pais e mães colocariam os seus pontos de vista nas políticas educacionais vividas nas escolas.
Na época, a equipe liderada por Paulo Freire entrevistou mais de mil famílias de alunos, distribuídas entre área urbana e rural do Recife, Zona da Mata e o sertão pernambucano, onde o SESI tinha núcleos que prestavam serviços a seus associados e famílias.
A pesquisa tinha por finalidade entender as relações entre pais e filhos. A questão dos castigos, dos prêmios, as mais variadas formas de castigar, os seus motivos mais frequentes, a reação das crianças ao serem castigadas, sua mudança de comportamento ou não, em relação à quem os castigavam.
Apurados os resultados, deparou-se com uma realidade que já esperavam: os pais e mães davam muita ênfase aos castigos físicos, realmente violentos, tanto na área urbana do Recife, quanto na Zona da Mata, no agreste e sertão. As áreas pesqueiras eram tidas como as mais violentas; parecia que nessas áreas o espírito de liberdade só permanecia meramente nas estórias de pescadores que pegavam suas precárias jangadas e se lançavam ao mar. As lendas sobre a liberdade individual não coincidiam com as ações truculentas de pais e mães contra seus filhos.
Na verdade, os pescadores viviam uma grande contradição. De um lado se sentiam homens livres e corajosos, enfrentavam o mar e seus mistérios, fazendo o que mais gostavam: pescar. Para eles, aquela atividade era uma ciência, pois sabiam fazer a leitura da lua, do sol, da natureza. Só não sabiam ler a esperteza dos atravessadores que compravam o resultado de seu incansável esforço a preço de banana. Quando algum pescador questionava tamanha injustiça, a resposta estava na ponta da língua “nós entramos com a estrutura de pesca e vocês com a mão de obra”. Essa prática é comum em várias regiões do País, principalmente onde estão localizados os bolsões de pobreza. Quando era perguntado o porquê de seus filhos e filhas faltarem tanto às aulas, alunos e país, separadamente, respondiam: “porque somos livres”, e os pais “porque são livres”.
Os castigos variavam nas demais áreas; era comum amarrarem crianças em troncos de árvores, prendê-las em quartos por horas, dar-lhes “bolos” com palmatórias, pô-las de joelhos sobre caroços de milho num canto da casa, ou da sala de aula, colocar orelhas de burro e forçando o aluno pronunciar para toda classe que realmente se sentia um burro por não aprender e em casa surrá-las com correia de couro. Este último castigo era comum quando os filhos desobedeciam a seus pais que tinham total autoridade sobre sua prole. Sobre essa questão (Freire, 1992, p. 22) destaca que: “Por motivos triviais se aplicavam estes castigos e se dizia frequentes aos assistentes de pesquisa: castigo duro é que faz gente dura, capaz de enfrentar a crueza da vida. Pancada é que faz homem macho”.
Uma das preocupações da época, que vale também para os dias atuais, era fazer a leitura da relação pais-filhos e da relação professor-aluno. Na primeira, ficou explicitado que o entendimento não prevalecia, o autoritarismo dos pais e mães e a ação violenta ditavam as regras. Na escola não era diferente. O frágil processo de aprendizagem sobre a democracia não permitia uma melhor relação entre professor-aluno, onde se deixava florescer a ideia do autoritarismo disciplinador. Professores conservadores que ensinavam usando métodos tradicionais, onde decorar era mais interessante do que aprender.
Nesse trabalho de pesquisa, Freire reconheceu a importância do voluntarismo, uma espécie de idealismo brigão, onde correr riscos era o que menos importava: estavam ali para entender a realidade do indivíduo, sujeitos que agonizavam em estruturas sociais arcaicas, onde as políticas públicas para a educação tardavam em chegar. Essas concepções da história e dos seres humanos negam definitivamente o papel da educação:
No que diz respeito às relações autoridades-liberdade, o tema da pesquisa referida, corremos também o risco de, negando à liberdade o direito de afirmar-se, exacerbar a autoridade ou, atrofiando esta, hipertrofiar aquela. Em outras palavras, corremos o risco de cair seduzidos ou pela tirania da liberdade ou pela tirania da autoridade, trabalhando, em qualquer das hipóteses, contra a nossa incipiente democracia (FREIRE, 1992, p.23).
Nesse contexto, defendeu uma escola pública eficiente, uma escola democrática de formação permanente de seus professores e professoras que também podia incluir os vigias, merendeiras, eletricistas e zeladores. Escola de formação permanente de seu corpo docente, onde reinasse o espírito da mutualidade e da solidariedade, a liberdade como prática educativa, a democracia substituindo as posturas autoritárias dos que conduzem a educação brasileira. Assim as relações pais-filhos, professor-aluno direciona as novas perspectivas de futuro. Esta foi uma das tarefas a que Freire dedicou por inteiro e, a partir dali, fez uma releitura da educação nas camadas populares.
De acordo com Freire (1967), o movimento de educação foi uma das variadas formas de mobilização sociais adotadas no Brasil. Desde a grande participação da população através do voto, quase sempre manipulada pelos líderes conservadores e populistas, até o nascimento dos movimentos de cultura popular organizada pela União Nacional dos Estudantes (UNE), registram-se diversos mecanismos de intervenção política, sociais ou culturais de mobilização e conscientização das massas. Neste contexto, caberia destacar o esforço realizado na linha de uma ampliação dos sindicatos rural e urbano, iniciado por Almino Afonso quando foi Ministro do Trabalho e que teve continuidade na gestão seguinte. Durante 12 meses criou cerca de 1.300 sindicatos rurais.
Sobre o período acima Freire (1992) destaca a importância deste trabalho quando aconteceram as grandes greves de trabalhadores rurais no estado de Pernambuco, a primeira com a participação de 85.000 grevistas e a segunda com 230.000. Por outro lado, a SUPRA (Superintendência da Reforma Agrária), não obstante seu curto período de funcionamento, pôde iniciar um trabalho de mobilização das classes populares do campo à defesa de seus interesses, com uma grande repercussão política.
Essa mobilização foi feita no último período do governo de João Goulart (1961-1964) e começava a colocar parte da elite em contato direto com o povo; apenas sugeria a necessidade de se organizar as massas populares para a ação, quando ocorreu a queda do regime populista que o havia possibilitado uma aproximação com os movimentos sindicais rurais e sua classe de trabalhadores e trabalhadoras que até então não tinham nenhuma representatividade.
Ficou nessa etapa a difusão dos princípios e não conseguiu passar adiante as práticas de alcance das políticas gerais que foram reduzidas à criação de uma “atmosfera ideológica”, pois não tiveram competência para criar uma verdadeira ideologia de ação popular de base mais ampliada. Mas foi o suficiente para aterrorizar a direita conservadora que sugeriu a necessidade de um golpe militar, insuficiente, no entanto para tirar-lhe o poder dos trabalhistas liderados por João Goulart. É de se perceber que ao longo da história política do Brasil, toda vez que se coloca as camadas populares (pobre) na agenda positiva do estado acontece uma reação das elites conservadoras, foi assim com os presidentes Getúlio Vargas no Governo Provisório (1930-1933); Governo Constitucional (1934-1937); Estado Novo (1937-1945); 2º mandato presidencial (1950-1954); João Goulart (1961-1964); Lula (2003-2011); e a história se repetira com a presidenta Dilma Rousseff (2011-2016).
Na realidade, toda aquela mobilização serviu para acordar as massas populares que passaram, naquele momento, a pressionar as estruturas do Estado, o que tinha uma indiscutível relevância política. Encontravam-se de forma direta ou indireta envolvida com o governo e, através dele, com as instituições existentes que a própria pressão popular ameaçava. “Este equívoco histórico, uma das características mais importantes de todo este período, não pode deixar de ser assinalado quando buscamos compreender o sentido do movimento educacional brasileiro” (FREIRE, 1967, p. 18).
O comprometimento de Paulo Freire com o trabalho voltado para as camadas populares é bastante claro. Em 1962, no Nordeste – a região mais pobre do Brasil – já existiam cerca de 15 milhões de analfabetos para uma população de 25 milhões de habitantes. Neste começo, o grupo de educadores liderados por Paulo Freire fizera a mais bem sucedida experiência de Alfabetização de jovens, adultos e idosos no Nordeste brasileiro, na cidade de Angicos, Rio Grande do Norte. Os resultados foram fantásticos: 300 trabalhadores rurais e populares alfabetizados em 45 dias impressionaram profundamente a opinião pública.
Mas antes de entrar diretamente no resultado de Angicos, é preciso entender que não se pode falar de educação de jovens, adultos e idosos, sem lembrar-se daquele que dedicou toda sua vida em prol dos marginalizados da educação em nosso país e no mundo. Como nasceu o método? Paulo Freire é um ícone da luta das camadas populares e sociais, um defensor da igualdade de direitos para as minorias e podem-se dizer, sobretudo, para diminuir as incertezas, as dúvidas, os enganos, e os mal entendidos sobre a contribuição desse brasileiro do Nordeste do país na educação no Brasil e no mundo, é só procurar entender a proposta metodológica de Paulo Freire, separar o seu método da sua teoria como um todo.
A proposta freireana não é justificada por si só, está contida em sua teoria de conhecimento. Nesse contexto deve-se enfatizar que a proposta de Paulo Freire foi construída passo a passo, buscando entender as diretrizes da educação de jovens, adultos e idosos, e sempre procurando entender o processo cognitivo que é eminentemente voltada para as questões essenciais na construção do ser como um todo, política, ética, humanista e democrática, porque o seu maior desafio era despertar nas camadas populares o seu direito de participar da sociedade não só como mais um, mas como um sujeito de direitos, e nisso atingir o nível de consciência crítica, demanda de quem faz a educação conscientizadora e libertadora que começa em ler a palavra lendo o mundo.
Assim desvinculamos a teoria e a compreensão de educação do método, como se qualquer uma dessas partes pudesse se sustentar uma sem a outra. Com isso a proposta freireana de alfabetizar tem como intenção maior proporcionar aos esquecidos da política de educação a oportunidade de sair da situação de ser menos para uma situação de ser mais, ao permitir que aqueles que tiveram negado o acesso à escola resgatem a sua dignidade perdida durante anos de incompetência daqueles que deveriam cuidar das pessoas, dando-lhes o direito de ter acesso ao mundo conhecimento.
Em última instância, “produzir os analfabetos/as” é arrancar-lhes a voz da participação, da cidadania e da vida social com dignidade. Ao analfabeto/a rouba-se o direito de biografarem-se, isto é, de serem sujeitos que podem ter suas histórias de vida como seres sujeitos da história, a partir de suas participações efetivamente concretizadas. A alfabetização conscientizadora possibilita aos indivíduos se constituírem como sujeitos e não ficarem eternamente só como objetos da incidência dos que sabem, podem, exploram, mandam e os submetem. (FREIRE.1978, p.232).
Com essa proposta de humanização de homens e de mulheres, levando até eles a base da teoria do conhecimento, Paulo Freire propõe muito mais do que fazer um método de alfabetização fugindo do modelo tradicional existente que limita os educandos e educandas a fazerem decoração de letras e sílabas e juntá-las para formar pequenas palavras, ele ia mais além, defendia que todos os seres humanos independentemente de cor, religião, raça, etnia e sexo, pudessem ser sujeitos de sua própria história. Gente que possa escrever e ler, interpretar e fazer as quatro operações, gente que tenha direito à moradia, trabalho, saúde e segurança, e o direito mais sagrado que é o direito de estudar em uma escola de qualidade, e com o resultado da escolarização das pessoas das camadas populares, esses ajudarem na transformação dos espaços onde estão inseridos e com o juntar dessas ações terem uma sociedade menos desigual.
Considera-se oportuno fazer um aprofundamento do método, fazendo o levantamento das concepções de como Paulo Freire entendia o seu cotidiano e o cotidiano das pessoas que viviam nas camadas populares. Fazia parte de sua rotina pesquisar nos livros o comportamento daqueles que vivia à margem de uma sociedade capitalista, os “esfarrapados do mundo”. Mas Paulo Freire era uma pessoa inquieta quando se tratava de analisar a rotina dos trabalhadores e trabalhadoras. Ele achava mais interessante estar de corpo presente nas ações dentro das comunidades desprovidas de políticas públicas essenciais para o seu desenvolvimento humano. Como destaca Ana Maria Araújo Freire (2006, p.335):
Na sua teoria, Paulo Freire partiu do pragmático, do óbvio que se repetia ingenuamente, magicamente por parte da população brasileira, e deu sentido a esse cotidiano não referendando o eterno repetir quase tão-somente da esfera animal em que muitas vezes viviam; partindo dele como fonte inesgotável de temas a discutir restaurou a fonte criadora que cotidianamente possibilita como ponto de partida para a reflexão crítica. (FREIRE, 2006, p.335)
Assim, ele partiu do cotidiano, do dito, do feito, e do entendimento no mundo e na rotina dos oprimidos, e a relação dialética com o do opressor fixou nele suas bases teóricas para tirar o sentido de sua luta junto aos populares, nesse contexto deu oportunidade para um grande número de pessoas se beneficiarem de sua compreensão da educação essencialmente política, ética e humana.
A metodologia de Paulo Freire surgiu quando seu filho Lutgardes, com dois anos de vida, fez a leitura da palavra NESCAU, associou a imagem com pronuncia que viu na propaganda da televisão com a palavra escrita em um painel de propaganda na rua, do alimento que ele conhecia muito bem, pois consumia diariamente.
“O menino cantarolou a música do anúncio ao ver a placa na rua e repetia Nescau… Nescau… (Nescau)”. Paulo Freire refletiu muito com o ocorrido, trancou-se em sua sala de estudos e começou suas reflexões- como sempre fez durante toda sua vida, pois a sua teoria surgiu da necessidade de fazer reflexão e de pensar a coisa acontecendo na prática, o óbvio, o cotidiano, e destacava que o ser humano tem uma capacidade imensurável de observar, e de escutar. O nascimento do tema gerador foi pedagogicamente a maior descoberta do século XX. Como destaca Ana Maria Freire (2006, p.337):
A intuição de Paulo Freire de que aquele momento não era apenas “uma sabedoria de um menino muito curioso” levou-o a reflexão sobre a lógica do fato. Assim, a partir dessa ideia, criou um caminho cognitivo-epistemológico – o chamado “Método Paulo Freire de Alfabetização”.
Paulo Freire testou pela primeira vez o seu método com a então empregada doméstica de sua casa, Maria Gonçalves da Silva, que era carinhosamente chamada por toda família de mãe. “Mãe” era uma mulher muito inteligente que na ocasião tinha em torno de cinquenta anos de idade. Mãe nasceu em uma época em que as mulheres, mesmo de família mais abastadas, poucas delas tinham o direito de ingressar no mundo do conhecimento, de estar na escola.
Então se compreende agora que para chegar a tão bem sucedida experiência de Angicos, Paulo Freire precisou de um tempo para aprimorar a sua tão brilhante descoberta e como o próprio Paulo Freire relata (1967), o governo de João Goulart, percebendo o sucesso do projeto, convidou-o para coordenar o Programa Nacional de Alfabetização (PNA), usando o seu método. A ideia era montar 20 mil círculos de cultura em todo Brasil. Assim, entre junho de 1963 e março de 1964, foram feitas capacitações dos coordenadores dos círculos de cultura em quase todas as capitais dos estados; só no Estado da Guanabara se inscreveram quase 6.000 pessoas.
O curso de capacitação atingiu milhares de pessoas que se colocaram à disposição do estado, queriam dar a sua cota de colaboração no combate ao analfabetismo.
O audacioso plano pretendia alfabetizar, só em 1964, dois milhões de pessoas. Cada círculo teria 30 alunos, com duração de 03 meses para cada curso “Tinha início assim uma campanha de alfabetização em escala nacional que envolvia, nas primeiras etapas, os setores urbanos, e deveria estender-se imediatamente depois aos setores rurais” (FREIRE, 1967, p.19).
A América Latina, nesse período, viveu diversos golpes de Estado e, no caso brasileiro, a proposta de alfabetização realizada por Paulo Freire foi considerada pelas elites econômicas uma ameaça para o país. Assim, o golpe civil- militar de 01 de abril de 1964 interrompeu um sonho de milhares de brasileiras e brasileiros que tinham a esperança de sentirem-se incluídos na sociedade. Paulo Freire foi preso, exilado, arrancado de sua pátria. “Preferiram me acusar por ideias que não professara a atacar esse movimento de democratização cultural, pois percebiam em mim o gérmen da revolta” (FREIRE, 1967, p. 19).
A importância da contribuição de Paulo Freire no cenário educacional do Brasil é indiscutível. O educador, preocupado com o grave problema de analfabetismo, sempre se dirigiu às massas populares que muitos consideravam fora do contexto histórico, procurando incluí-las pela educação. O educador esteve a serviço da conscientização e libertação de homens e mulheres. Por isso será sempre lembrado por estudiosos e pesquisadores que acreditam na educação como principal ferramenta de inclusão social.